
Veneno para Rato –
Possíveis escrituras como antídoto para a cartilha da boa escrita.
Contaminado pelo amplo entendimento de escritura proposto por Derrida e pelo compromisso ético-estético do fazer-dizer performativo de Setenta, exercito uma escritura videoalfabéticafotográfica para formular algumas sínteses provisórias a respeito do processo singular de apropiação das diferentes grafias urbanas. Neste texto, pretendo partilhar algumas questões problematizadas pelo processo investigativo em dança caligrafia=design performativo em colabração com a artista Paula Carneiro.
Proponho, nesta investigação, pensarmos não no conceito, mas na idéia do jogo linguístico de caligrafia enquanto traço que se configura em diálogo com o ambiente, no caso desta investigação, o ambiente urbano, e se singulariza pelo modo de se apropiar das diferentes grafias urbanas.
Diversas estratégias estão sendo experimentadas nesta pesquisa como: andar pela cidade atento à permeabilidade do ambiente, criar um inventário de imagens através de um registro alfabético ou fotográfico, utilizar o inventário alfabético para super estimular o corpo e colapsar padrões corporais através do jorro de metáforas e narrativas, criar objetos relacionais a partir de imagens sugeridas e objetos encontrados na rua, investigar uma escrita silábicapictóricaalfabética, parangolear a escrita. Porém, antes de detalhar melhor essas estratégias defino o que entendo por traço caligráfico e caligrafia nesta investigação.
O traço caligráfico é entendido por mim enquanto movimento, ações no espaço (papel, palco, rua, tela de computador...) que configuram diferenças provisórias, uma diferença em andamento que se formula na tensão do contínuo que atravessa o legível, o ilegível, a tradição, a singularidade, a estabilidade, a instabilidade... Aqui o percurso do traço é mais importante do que as definições e o acabamento do discurso, o foco é o decurso do discurso, o inacabamento do discurso abre as perspectivas para que o traço continue formulando outras grafias ou escrituras.
Este traço não é metafísico, numa dimensão individual ele se configura pela contínua apropiação do indivíduo das diferentes grafias. E na dimensão do ambiente, diferentes traços se configuram numa relação de co-dependência e contaminação das diferentes grafias no espaço negociando a sua organização a todo momento:
Num certo sentido, o conceito de traço poderia ser considerado ainda mais essencial ao modelo de Derrida do que o conceito de “escritura”, na medida em que não pode haver escritura sem traço, sem inscrição violenta, sem resíduo. Mas, novamente, Derrida tem um entendimento dinâmico de traço, isto é, o traço é tanto movimento como substância, tanto protensão em direção a um futuro como retenção de um passado. Derrida insiste repetidas vezes que o traço não é nada, ele não é, propiamente falando, uma entidade ou substância. (JOHNSON,2001:39)
O modo de organizar as diferentes informações que acessamos é que termina por singularizar a nossa caligrafia, o percurso do nosso traço caligráfico. A singularidade da caligrafia não reflete uma identidade fixa, mas propõe uma escrita singular que se constrói em diálogo com o ambiente a todo tempo. Essa caligrafia gera diferença em sua forma de se organizar e ao mesmo tempo não se fixa, pois no diálogo com o ambiente ela se altera. Por tanto, sua diferença é provisória e se assemelha com o jogo linguístico de Derrida sobre differánce que é diferença e adiamento, sentido que leva em consideração o contínuum espaço temporal que torna a diferença móvel e sem origem:
“A dimensão temporal que Derrida fornece ao seu modelo de “escritura” nos lembra que essa escritura que diferencia violentamente (escritura = violência = diferença), que gera as diferenças que são constitutivas de sistemas complexos, não é, por analogia com a escritura no sentido comum do termo, um resíduo tangível ou visível, não é uma “escritura” estática. Pelo contrário, é um processo, um movimento que institui diferença enquanto, ao mesmo tempo, a mantém em reserva, retardando sua apresentação ou operação. Derrida usa o termo différance para descrever esse processo, o qual ele frequentemente refere como o movimento de diferença.”(JHONSON, 2001:38)
Já que considero o modo de organizar diferentes informações uma singularidade caligráfica, devo lembrar que esse modo implica em escolhas e constante diálogo com o ambiente, portanto implica em postura política e capacidade de atualizar seus questionamentos e tais implicações me fazem entender a caligrafia como um design performativo. Para esclarecer melhor essa relação utilizo o entendimento de design em dança via Helena Katz e o entendimento de performatividade em dança proposto por Jussara Setenta:
“A idéia de performatividade reúne processo e produção da fala da dança (que não são duas intâncias separadas) e indica que o interesse está em se observar os diferentes modos de fazer e organizar estas falas no corpo. É necessário, então, tentar diluir as idéias de fixação e buscar trabalhar com idéias que subvertam e desestabilizem posições pré-estabelecidas.”(SETENTA, 2008:101)
Em seu livro O fazer-dizer do corpo, dança e performatividade, a autora Jussara Sententa propõe um entendimento do corpo que dança a partir do conceito de performatividade da filósofa Judithe Butler, que amplia o conceito de performativo de Austin, entendendo os atos e a organização da fala como um ato corpóreo e não apenas fonético. O mais importante numa abordagem performativa em dança é o jeito como você organiza as informações. Segundo Helena Katz, “essa organização é o seu design, o modo como as informações tomam forma.”
Portanto, o modo como me apropio das informações e invento a minha dança gera uma caligrafia=design performativo.
Afinal, a dança se nutre dos ajustes entre aleatório e cumulativo. A cada dia, por causa de todas as informações que vão transformando o corpo, ele é sempre um corpo único. Assim, qualquer corpo reúne uma certa coleção de informações a cada momento de sua vida. E é essa coleção de informações na forma de um corpo (que se encontra em transformação permanente, pois há muitos tipos de informação que não param de chegar) é esse corpo – do fluxo incessante de trocas de informação com os ambientes por onde transita – que dança. (KATZ, 2007:199)
Considerando este modo de organizar esta caligrafia, esboço algumas questões para serem respondidas não neste ensaio, mas no decorrer desta investigação que propõe uma dança enquanto caligrafia=design performativo:
Entendendo que a criação artística pressupõe um processo pedagógico, estou experimentando alguns desses procedimentos em oficinas e cursos com artistas e não artistas e observando como se dá o entendimento da caligrafia em outros corpos. Um exemplo interessante foi experimentar essa idéia de caligrafia na comunidade da Gamboa de Baixo durante o período do primeiro semestre de 2009 como professor no ponto de cultura do Teatro Gamboa.